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Sexta, 11 de maio de 2007, 08h03

EUA apostam no etanol sem medir conseqüências

Oscar Raúl Cardoso
Buenos Aires, Argentina

A febre do etanol não pára de crescer, estimulada por uma rede de interesses políticos e econômicos. Os Estados Unidos investiram US$ 35 bilhões na produção desse biocombustível, em 2006. Mas essa estratégia acarreta mais de um problema mundial.

Os biocombustíveis, e em especial o etanol, nos últimos meses se transformaram em palavras que parecem não só designar o fruto do trabalho humano mas também apontar para um encanto típico das fórmulas mágicas do passado. São como o "abre-te, Sésamo", de nossa era.

Os governantes as incluem com freqüência em seus discursos e declarações, os economistas as mencionam como futuras maravilhas de produção - e com a mesma sensação de veneração com a qual, antes da Enron, se falava nas promessas da "nova economia" e das "ponto com". Os biocombustíveis vêm sendo alardeados como resposta apropriada à crise ecológica planetária e se tornaram parte das mais elaboradas soluções geopolíticas.

Um exemplo desse último ponto são os acordos assinados recentemente pelos presidente Luiz Inácio Lula da Silva e George W. Bush, em Washington e Brasília, para cooperação na produção de etanol, interpretados como esforço para cercear a expansão do venezuelano Hugo Chávez e para alertá-lo de que a principal arma para a expansão da chamada "revolução bolivarianaa" - os petrodólares - tem seus dias contados.

Atribuir intenções sinistras a esses acordos é tão simplista quanto afirmar que a invasão do Iraque em 2003 foi motivada apenas pelo petróleo. Mas Fidel Castro emergiu de seus meses de convalescença com um artigo no qual ataca a idéia do etanol, o que só serviu para estimular essa visão do álcool como escudo contra a dependência de petróleo, e conseqüentemente como ferramenta para deter a expansão regional de Chávez. Não só Chávez como todo o Oriente Médio estão envolvidos nesse esquema.

Sem dúvida esses fatores têm alguma influência, mas é impossível não perceber que a questão dos biocombustíveis é muito mais complexa do que parece à primeira vista. E que as advertências sobre o etanol, e as dúvidas sobre sua produção primária, os métodos envolvidos e o impacto sobre os mercados de alimentos e combustíveis, muitas vezes têm fundamentos sólidos, e é melhor tratar dos problemas o mais cedo possível.

Vale a pena colocar a questão em perspectiva. Ao contrário do que se costuma supor, o etanol tem uma história que, no caso dos Estados Unidos e Brasil, seus dois maiores produtores, se estende por mais de três décadas, e remonta aos dias em que os norte-americanos tentavam escapar aos efeitos do embargo petroleiro imposto em 1974 pela Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep).

Em 2005, cerca de 37 bilhões de litros de etanol foram produzidos no mundo, dos quais a cana-de-açúcar brasileira, o insumo mais eficiente, por enquanto, contribuiu com 45,2%, enquanto o milho norte-americano respondia por 44,5%. Os especialistas incluem no cômputo os quase quatro bilhões de litros de biodiesel produzidos principalmente na Europa. Nos Estados Unidos, em especial, o desdobramento criou, no período, um segmento fortemente subsidiado de atividade agrícola (US$ 8,9 bilhões em 2005), e, por isso mesmo, parece representar o cumprimento das profecias que a tendência mesma criou.

Os investidores que correm para aplicar recursos a esse promissor futuro do milho se converteram em apóstolos de seus méritos e defendem as facilidades relacionadas aos subsídios. O ciclo se fecha hermeticamente, e qualquer visão alternativa é criticada ou rechaçada.

Estima-se que, em 2006 apenas, tenha havido US$ 35 bilhões de investimento genuíno - além dos subsídios, mas estimulado por eles - na compra de milho e na criação de instalações de produção de etanol, uma tendência que, este ano, reduzirá os estoques de grãos norte-americanos ao seu mais baixo patamar em uma década, ainda que safras recordes estejam sendo colhidas.

E esse desdobramento se produz quando, dizem os especialistas, nem mesmo é seguro que o etanol venha a ser o biocombustível do futuro, como apregoam seus defensores, entre outras coisas porque o boom ainda não foi influenciado pela resposta do mercado, já que está seguro por trás das muralhas de proteção estatal. As muralhas não são de cristal, como o demonstra a sistemática rejeição de Bush ao pedido brasileiro de que suspendesse as tarifas que encarecem a importação de álcool brasileiro pelo mercado norte-americano.

Como propôs recentemente Lisa Margonelli, jornalista especializada em temas do setor energético, "precisamos reduzir a escala de nossas expectativas para podermos produzir os biocombustíveis que se provem mais apropriados, e não aqueles que sejam politicamente mais atraentes". A situação atual do etanol invoca o que aconteceu com outra moda surgida no início deste século, a da promoção da idéia do hidrogênio como nova fonte da energia limpa, barata e eficiente com que a humanidade sonha e que estava por se concretizar, como assegurou em 2002 o então secretário norte-americano da Energia Spencer Abraham.

"O hidrogênio pode alimentar muito mais do que automóveis e caminhões leves, nossa área de interesse. Pode ser empregado para gerar eletricidade, abastecer aviões, barcos e trens. Pode gerar calefação e servir como fonte de energia a processos industriais", disse ele em discurso naquele ano.

O hidrogênio está, na melhor das hipóteses, ainda engatinhando como fonte de energia, e o fato é que, quando Abrahams ofereceu a perspectiva sedutora dessa idéia, seu país importava 11 milhões de barris de petróleo cru ao dia, e hoje importa 14 milhões. As estimativas menos pessimistas apontam que a dependência norte-americana quanto ao petróleo do Oriente Médio, que Bush prometeu reduzir, crescerá para cerca de 40% em 2030. O impacto da fúria do etanol sobre a produção de alimentos começa a se fazer sentir, e a sensação que causa não é boa. O Banco Mundial informou há uma semana que cerca de um sexto dos seres humanos (cerca de um bilhão de pessoas) sobrevivem com menos de US$ 2 ao dia, e para eles qualquer aumento no preço mundial dos grãos, por mais ínfimo que seja, poderia representar sentença de morte.

Como explicaram na mais recente edição da "Foreign Affairs" os especialistas C. Ford Runge e Benjamín Senauer - dois acadêmicos da Universidade de Minnesota-, encher de etanol o tanque (cerca de 95 litros) de um utilitário requer quantidade de milho suficiente para alimentar um adulto durante um ano.

A apreensão desses especialistas se relaciona à forma pela qual a atração do etanol influencia negativamente os preços internacionais, não só do milho e outros cereais que podem servir à produção de álcool mas também de alimentos que não estão diretamente relacionados ao processo de produção do biocombustível. É o caso do aumento do preço da carne de porco, espécie cuja alimentação baseada em milho custará mais cara agora que o preço internacional do produto chegou ao seu mais alto nível em uma década.

Apontar para esses fatores nada tem a ver com bloquear o crescimento genuíno de um produto como o etano. A função do alerta é iluminar os problemas que esse desdobramento trará para que se possa antecipá-los e preveni-los. E para que haja a consciência de que, apesar de todas as promessas atuais, o existe sempre a possibilidade de que o etanol não seja a resposta dourada ao dilema energético mundial.

Tradução: Paulo Migliacci

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Ricardo Stuckert/Agência Brasil
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